sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Esculpido pela água: Terra Viva

Geógrafos de uma nova Terra (que nunca foi plana)

A Geografia, por excelência, é a ciência que estuda a Terra; “um saber tão antigo quanto a própria história dos homens”, afirmou certo geógrafo. E não podemos falar de geografia sem tecer comentários acerca dos gregos. Na sua fase mítica, a civilização grega concebia a Terra como uma divindade primordial chamada Geia ou Gaia: Mãe-Terra ou Grande Mãe – a deusa-matriz procriadora de todos os seres. Assim, de Geia derivou a palavra “geografia” que, etimologicamente, significa “descrição da Terra”. Os gregos deram o pontapé inicial para o nascimento e desenvolvimento do saber geográfico, sendo os pioneiros na sistematização desse saber. Nomes como Estrabão (ou Strabo), Eratóstenes, Ptolomeu e Hiparco são bastante familiares aos geógrafos. Afinal, esses homens foram as figuras mais preeminentes do período embrionário da Geografia. Suas ideias, revisadas pelo conhecimento atual, provocaram profundo impacto na maneira como o ser humano concebia o planeta. Dessa forma, não podemos desconsiderar a enorme contribuição dos gregos em relação ao pensamento geográfico. No entanto, desviemos nossa atenção da Grécia para um povo de mentalidade bastante diferente da grega, mas que também influenciou fortemente a civilização ocidental. Em relação à concepção geográfica do mundo, vamos deixar a Grécia antiga para nos concentrarmos no antigo Israel.

Israel não sobressaiu como um povo de mentalidade filosófica ou científica. Seu destaque é a religião monoteísta e sua maior contribuição, junto com o cristianismo, está na produção da Bíblia. Sendo uma peça da literatura universal, o objetivo primário da Bíblia é religioso. Entretanto, ainda que o foco dela esteja em aspectos da fé, há assuntos e princípios na Bíblia que tangenciam as ciências, produzindo muitas vezes insights na mente de quem é despertado pelas “provocações” bíblicas. Diante de tal enfoque, manteria a Bíblia alguma relação com o conhecimento geográfico? Se sim, em que sentido? Teriam as Escrituras elementos interessantes para apresentar aos geógrafos do século 21, revelando-lhes, quem sabe, uma filosofia da Geografia ousada e abarcante – algo ainda não cogitado? Sobre geografia e fé, algumas observações prévias são necessárias.

Para a mente científica ou religiosa, uma coisa é certa: da concepção geocentrista para a heliocentrista, de Ptolomeu a Copérnico, a Terra continua sendo o “centro do Universo” e da atenção da humanidade. Porém, certas pessoas céticas e antirreligiosas (e mesmo alguns cristãos fideístas), fazendo uso de uma interpretação distorcida da linguagem bíblica, defendem o argumento de que as Escrituras ensinam o conceito da Terra plana. Em pleno século 21 – época de grande avanço tanto da ciência quanto da exegese do texto bíblico –, eis o curioso fenômeno da invenção da Terra Plana! As motivações de ambos os grupos são diferentes, mas convergem para o mesmo fim: alimentar o desgastado conflito fé vs. razão/Bíblia vs. ciência. Assim, o cético se esforça para tornar a Bíblia anticientífica e obscurantista; já o cristão fideísta, embora tente defender o criacionismo, termina por apresentar uma contrafação perniciosa desse movimento, expondo ao ridículo as Escrituras e desmerecendo os esforços de criacionistas sensatos que procuram harmonizar boa ciência com boa teologia. Os “terraplanistas da fé” vão na direção contrária ao consenso universalmente reconhecido e testado: o planeta tem forma geoide. Por outro lado, os “terraplanistas da descrença” impõem sua hermenêutica deficiente à Escritura na tentativa de descaracterizá-la e promovê-la como um livro de ignorância e superstição, uma boa obra de mitologias. Se aqueles atacam a ciência, estes investem contra a teologia e o Livro Sagrado. Ambos produzem espantalhos.

Em rigor, a Bíblia e a ciência são antiterraplanistas. Textualmente, os argumentos para respaldar a Terra plana não encontram amparo no material escriturístico; constitui uma tese defendida à revelia dos fatos, ou seja, tremendo equívoco teológico e científico. Portanto, o argumento terraplanista (não importa de onde ele surja, da mente descrente ou religiosa) resulta da má aplicação de textos alegóricos ou poéticos, ou mesmo de passagens bíblicas que apontam para uma explícita linguagem fenomenológica cuja leitura dispensa explicações científicas rigorosas.

As Escrituras foram escritas para o homem comum entendê-las; sua linguagem está adaptada a todas as pessoas, cultas ou não, de todas as épocas. O ponto de equilíbrio nesse assunto é não considerar a Bíblia como um manual de ciências (seu propósito é outro); tampouco estabelecer a ciência como exegeta das Escrituras. Em suma: “A Bíblia não nos fornece uma concepção modelar ou teórica e a ciência não pode nos fornecer uma concepção de fé”, resumiu um criacionista bem informado. Nesse aspecto, lúcidos são os esclarecimentos do pensador cristão Ravi Zacharias, os quais servem de advertência e ensinamento a qualquer pessoa que busque estabelecer conflitos artificiais entre a ciência e o pensamento judaico-cristão: “Em vez de compreenderem a intenção e o contexto daqueles para quem a revelação foi dada, os naturalistas zombam da descrição bíblica dos atos de criação de Deus como uma ofensa à sofisticação científica. No outro extremo estão os teístas que tentam fazer com que o registro da criação pareça uma dissertação cosmológica e depois se debatem para defendê-la. Nenhuma porção das Escrituras jamais reivindicou ser material técnico-científico nem tentou satisfazer a mente técnica.”

A geografia na Bíblia

A Bíblia está permeada de geografia em suas páginas. De Gênesis a Apocalipse perpassa uma distinta linguagem geográfica (ora real, ora metafórica), revelando um modo diferente, e mesmo religioso, de se conceber o espaço físico e a relação deste com seus ocupantes. Existem referências a rios, mares, vales, colinas, florestas, montanhas, cavernas etc. Por todo o Livro são mencionados nomes de terras, povos, países, cidades e impérios, em conexão com a história de Israel e, posteriormente, com a da igreja cristã.

Só no livro de Gênesis encontramos rico conteúdo informacional. No âmbito da Geografia Física, lemos acerca da criação do espaço por Deus, a organização dos variados ambientes terrestres, a formação do relevo (bem diferente do atual) e o surgimento da humanidade, cuja missão era a de exercer domínio pacífico sobre o mundo, administrando-o cuidadosamente. Mais adiante, por causa da queda humana, vislumbramos as forças da natureza modificando a topografia do planeta no evento do dilúvio universal – a grande catástrofe hídrica considerada mito pelos cientistas naturalistas, mas cujas evidências ajustam-se a variados fatos da geologia. Ainda no Gênesis, no tocante à Geografia Humana, contemplamos a construção das primeiras cidades e a dispersão dos povos de uma única região para as diferentes partes da Terra, resultando no aparecimento das nações que vieram a ser o berço das civilizações antigas.

Na Bíblia encontra-se também um fato social de grande interesse para os geógrafos contemporâneos. Em nossa época, na qual a luta por terras é marcante, as Escrituras narram os conflitos de Israel pela ocupação de Canaã ou Terra Prometida, pequena região do Oriente Médio, situada estrategicamente em relação às outras nações circunvizinhas. Esse lugar, que por direito já era dos hebreus, mediante a posse legal obtida por Abraão, foi ocupado por outros povos durante o período do cativeiro de Israel no Egito. Deus, contudo, havia assegurado a devolução de Canaã aos seus antigos donos. A partir de tal promessa iniciou-se uma “luta geográfica” pela terra que “manava leite e mel”.

Mesmo quando trata de espiritualidade, a Bíblia não deixa de nos brindar com belíssimas aplicações figurativas de elementos pertencentes ao universo da Geografia. Nas suas passagens textuais, ela nos apresenta Jesus como a “Rocha dos Séculos” ou o firme fundamento, o Espírito Santo como “chuva” e “vento refrescante”; fala-nos de “rios de água viva”, do Monte Sião e do “lugar chamado Gólgota”, dos “quatro cantos da Terra”, do “mar de vidro claro como cristal”, etc. Notamos em suas páginas a confluência de dois mundos: o natural e o espiritual. Partindo da perspectiva estritamente geográfica para a transcendência, encontram-se nesse Livro assuntos empolgantes e desafiadores, os quais despertam e estimulam a reflexão do geógrafo, transportando-o além do mundo físico. Dessa maneira, percebe-se nas Escrituras o que poderíamos chamar de “metafísica da Geografia” – um modo peculiar de se pensar sobre a Terra e acerca do Universo: tudo a partir da realidade de um eterno Criador do tempo e do espaço. É nesse ponto que se encontra a contribuição hebraica ao pensamento geográfico.

Foi um profeta israelita, dos maiores na história desse povo, que declarou: “Porque assim diz o Senhor, que criou os céus, o Deus que formou a Terra, que a fez e a estabeleceu, não a criando para ser um caos, mas para ser habitada” (Isaías 45:18). Ordem, harmonia, funcionalidade, interdependência e beleza foram fatores propositais da mente divina no momento da criação. E mesmo com o aparecimento do mal na face da natureza, tais propósitos continuam vigentes, alertando o ser humano contra a ameaça do caos produzido pela sua queda no pecado. Mais: na mentalidade hebraica subjaz a noção da presença divina em todos os lugares do planeta, mesmo naqueles mais inóspitos e distantes. Que nos diga Davi, no Salmo 139:7-10: “Para onde poderia eu escapar do Teu Espírito? Para onde poderia fugir da Tua presença? Se eu subir aos céus, lá estás; se eu fizer a minha cama na sepultura, também lá estás. Se eu subir com as asas da alvorada e morar na extremidade do mar, mesmo ali a Tua mão direita me guiará e me susterá.” Para o rei-poeta, o espaço estava imbuído de sacralidade – matéria vigiada e protegida pelo Espírito –, revelando a onipresença divina, ainda que o homem não a percebesse.

Três momentos geográficos

A Terra é um planeta privilegiado por várias razões. Diminuta na imensidão cósmica, ela se destaca pelas características singulares que evidenciam, em sua origem astronômica e organização espacial, a atuação de uma poderosa Mente planejadora. Biblicamente podemos pensar a Terra em três momentos geográficos: o primeiro deles é o do passado, inaugurado com a ordenação da matéria preexistente e a consequente organização da vida terrestre, conforme relata o livro de Gênesis. Ali é dito que tudo Deus fez muito bom. Paisagens exuberantes e cenários encantadores faziam do nosso planeta um paraíso. A autora cristã Ellen White, pensando na Criação, comentou:

“Quando a Terra saiu das mãos de seu Criador, era extraordinariamente bela. Variada era a sua superfície, contendo montanhas, colinas e planícies, entrecortadas por majestosos rios e formosos lagos; as colinas e montanhas, entretanto, não eram abruptas e escabrosas, tendo em grande quantidade tremendos despenhadeiros e medonhos abismos como hoje elas são; as arestas agudas e ásperas do pétreo arcabouço da terra estavam sepultadas por sob o solo fértil, que por toda parte produzia um pujante crescimento de vegetação. Não havia asquerosos pântanos nem áridos desertos. Graciosos arbustos e delicadas flores saudavam a vista aonde quer que esta se volvesse. As elevações estavam coroadas de árvores mais majestosas do que qualquer que hoje exista. O ar, incontaminado por miasmas perniciosos, era puro e saudável. A paisagem toda sobrepujava em beleza os terrenos ornamentados do mais soberbo palácio.”

Hoje nem tudo são flores. Na perspectiva do conhecido filósofo alemão Leibniz, a Terra é “o melhor dos mundos possíveis”. Voltaire zombou dessa afirmação otimista, contra-argumentando com a obra literária Cândido, na qual exacerba as desgraças, catástrofes e sofrimento do planeta criado por um Deus de amor. Tanto a teodiceia de Leibniz quanto o ceticismo de Voltaire parecem não considerar o seguinte: com a separação da humanidade de Deus, infelizmente instalou-se o segundo momento geográfico, vigente até agora (Gênesis 3). O paraíso terrestre se transformou numa terra hostil, marcada pela luta contra as forças destrutivas da natureza. Na era presente, “toda a criação geme e está juntamente com dores de parto até agora” (Romanos 8:22). O profeta Isaías nos dá um vislumbre dessa instância: “A terra pranteia e se murcha; o mundo enfraquece e se murcha” (Isaías 24:4). Sob tal contingência, em circunstâncias de enfraquecimento do planeta, os geógrafos estudam e trabalham.

A Geografia atual, em suas várias vertentes, lida com problemáticas ameaçadoras, entre as quais as explosões demográficas, a injusta distribuição da riqueza, fome, crises ambientais com a descaracterização de paisagens naturais e a extinção de espécies. Este é o momento crítico dos geógrafos, a luta para preservar um mundo combalido, tentando torná-lo o melhor dos mundos possíveis, já que o “admirável mundo novo” é utopia – objetivo inatingível pelas mãos humanas.

Contudo, existem boas notícias! Elas estão no terceiro momento geográfico: visão da geografia do futuro, antecipada somente na Bíblia. Se a Geografia é a “descrição da Terra”, apresenta-se um desafio à imaginação do geógrafo, convidando-o a ultrapassar o horizonte presente para visualizar o quadro de “um novo céu e uma nova Terra”.

Lemos em Apocalipse 21:1: “Então vi um novo céu e uma nova terra, pois já o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe.” Em 2 Pedro 3:13, é delineada a expectativa cristã do cumprimento dessa inacreditável realidade: “Mas nós, segundo a Sua [de Deus] promessa, aguardamos novos céus e nova terra, nos quais habita a justiça.” Aqui temos a “promessa geográfica”, feita por Deus, de modificação radical da face do mundo no qual habitamos. O Seu propósito iniciado lá na criação, de um planeta perfeito, será retomado finalmente quando todas as coisas forem restauradas.

Na reinauguração da Terra descrita em Apocalipse, o estudante da “nova Geografia” ficará extasiado perante um relevo totalmente diverso do que ele vê atualmente, sendo também harmoniosa a relação homem-natureza. A vida urbana será vivida numa cidade espetacular chamada “Nova Jerusalém”, lugar sem os temores e a violência das modernas cidades de nosso mundo. As principais direções geográficas (Norte, Sul, Leste, Oeste) estarão sinalizadas por portas sempre abertas, significando o livre acesso de todos a essa capital universal. Seres humanos renovados adentrarão os portais da cidade eterna, onde os valores supremos, fundamentados no amor absoluto de Deus, perdurarão para todo o sempre. A Nova Jerusalém constituirá local de incomparável esplendor, a metrópole do Universo. Isso não é uma ficção geográfica, mas uma certeza prometida. Apocalipse 21:5 confirma: “E o que estava assentado sobre o trono disse: Eis que faço novas todas as coisas. E disse-me: Escreve; porque estas palavras são verdadeiras e fiéis.”

A Terra, nosso endereço no Universo, é uma “joia da engenharia tão complexa que é capaz de suportar com graça e destreza as consequências do mais sangrento passado”. Os geógrafos lidam hoje com uma Terra açoitada por catástrofes, vitimada por graves problemas ecológicos, sociais e urbanos. Vive-se um período de crises de ordem planetária. Todavia, o pensamento geográfico pautado na Bíblia alimenta-se da esperança: transcende a triste realidade dominante e projeta-se para o glorioso futuro, indo na direção daquele terceiro momento quando novas se farão todas as coisas. Nessa modificação imposta por mãos sobrenaturais, virá o melhor de tudo: Deus morará com a humanidade. Consequentemente, todos os espaços serão preenchidos com Sua presença santificadora. Fora ou dentro de cada ser, não haverá regiões tristes, medonhas, perigosas, poluídas, pois como diz Isaías, o profeta já mencionado por nós, “a Terra se encherá do conhecimento do Senhor, como as águas cobrem o mar” (Isaías 11:9). O espaço terrestre e o espaço dentro das criaturas encontrar-se-ão em Deus. Só aí, então, teremos o melhor dos mundos possíveis.

Quem não gostaria de estar num lugar assim, estudando e vivendo sob tal realidade? Quem não almejaria ser geógrafo de uma nova Terra?

(Frank de Souza Mangabeira, membro da Igreja Adventista do Bairro Siqueira Campos, Aracaju, SE; servidor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Sergipe)

Lido em: Criacionismo

O santuário de Shiló - Evidências

domingo, 3 de setembro de 2017

Arqueologia em Israel (2)

Arqueologia em Israel (1)

Um Deus exibido e exagerado - Dr. Marcos Éberlin

Água - Essência da vida: Terra Viva

Francisco e o domingo

Declaração do papa sobre o resgate do descanso dominical desperta reflexões

“Talvez seja a hora de nos perguntarmos se trabalhar aos domingos é uma liberdade verdadeira” – afirmou o papa Francisco recentemente, numa visita a Molise, no sul da Itália. O que rende apenas uma nota num jornal secular não passa despercebido em nosso radar profético. Para aqueles que vigiam na madrugada da história, qualquer afirmação mais assertiva de Roma é digna de atenção. De fato, a declaração do papa não se trata apenas de uma frase solta no ar, de um anseio ou uma opinião pessoal, mas de uma posição institucional em favor do restabelecimento de uma instituição essencialmente romana, o domingo.

A declaração é emblemática, pois fala sobre o momento atual, sobre um dia de descanso e sobre liberdade, conceitos de enorme peso no panorama escatológico, conforme entendemos. Logicamente, o papa não tinha as profecias em vista ao fazer sua declaração, mas a lógica por trás de sua fala não deixa de ter implicações profundas para o bom entendedor.

Leia também:

O Papado e a questão do domingo

Discursos papais

Em sua encíclica Laudato Si (“Louvado Seja”), na qual trata do cuidado do planeta, ele menciona a importância de participar na eucaristia aos domingos: “A participação na Eucaristia é especialmente importante ao domingo. Este dia, à semelhança do sábado judaico, é-nos oferecido como dia de cura das relações do ser humano com Deus, consigo mesmo, com os outros e com o mundo. O domingo é o dia da Ressurreição, o ‘primeiro dia’ da nova criação, que tem as suas primícias na humanidade ressuscitada do Senhor, garantia da transfiguração final de toda a realidade criada” (itálicos acrescentados).

Percebe-se que, da mesma forma que enraíza a identidade do domingo no sábado bíblico, Francisco o distingue dele, restringindo-o aos limites do judaísmo. Sem dúvida, o sábado tem uma forte e respeitável identidade judaica, mas deve-se lembrar que é anterior ao povo judeu, de acordo com as Escrituras, uma dádiva concedida a toda a humanidade (Gênesis 2:1-3). O mandamento do sábado não foi uma inovação do Sinai ou dos dez mandamentos, mas um “lembra-te” que remete às origens. Na argumentação do pontífice romano, o chamado sábado cristão (o domingo), tanto no meio católico como no protestante, reveste-se de todas as prerrogativas do sábado bíblico. Transforma-se numa das maiores respostas para a crise ecológica, assim como de todas as outras (a palavra “crise” é utilizada 30 vezes ao longo da encíclica).

Na encíclica, Francisco completa o raciocínio argumentando que “a lei do repouso semanal impunha abster-se do trabalho no sétimo dia, ‘para que descansem o teu boi e o teu jumento e tomem fôlego o filho da tua serva e o estrangeiro residente’ (Êxodo 23, 12). O repouso é uma ampliação do olhar, que permite voltar a reconhecer os direitos dos outros. Assim o dia de descanso, cujo centro é a Eucaristia, difunde a sua luz sobre a semana inteira e encoraja-nos a assumir o cuidado da natureza e dos pobres”. A linguagem suave em torno do restabelecimento do domingo como bálsamo para as feridas da humanidade e do planeta traria consigo um ímpeto ainda maior à causa do domingo assim como à influência global da Igreja Católica. Sua linguagem não expressa o apelo de um líder religioso, mas a voz de um estadista global cheio da autoridade de uma igreja que sabe aonde quer chegar.

A voz de Francisco faz avançar o aggiornamento (“atualização”) proposto desde o Concílio Vaticano II, nos anos 1960, para tornar o catolicismo mais relevante na sociedade. Desde então, as encíclicas, assim como todos os esforços e a comunicação da igreja romana, não apresentam mais suas crenças pela força do dogma, ou da autoridade eclesiástica em si. Procura-se apresentá-las, agregando elementos bíblicos, filosóficos, antropológicos, científicos e ecumênicos, entre outros, para a defesa dos pontos de vista romanos. Quanto ao domingo, sem dúvida, a maior referência é a encíclica Dies Domini (“Dia do Senhor”, de 1998), assinada pelo papa João Paulo II, com a participação de Joseph Ratzinger, seu futuro sucessor (confira aqui uma resenha que preparei anos atrás sobre a encíclica).

No ano de 2000, João Paulo II afirmou: “A ‘pequena semente’ que João XXIII lançou […] cresceu e deu vida a uma árvore que já alarga os seus ramos majestosos e frondosos na Vinha do Senhor. Ele já deu numerosos frutos nestes 35 anos de vida e ainda dará muitos outros nos anos vindouros. Uma nova estação abre-se diante dos nossos olhos […] O Concílio Ecuménico Vaticano II constitui uma verdadeira profecia para a vida da Igreja; e continuará a sê-lo por muitos anos do terceiro milénio há pouco iniciado. A Igreja, enriquecida com as verdades eternas que lhe foram confiadas, ainda falará ao mundo, anunciando que Jesus Cristo é o único verdadeiro Salvador do mundo: ontem, hoje e sempre!” (itálicos acrescentados). Como uma organização milenar, Roma não faz planos para o ano que vem, mas para décadas e eras. Está em seus planos a vinda de uma “nova estação”, na qual “falará ao mundo”.

Veja um vídeo que trata dessa controvérsia entre sábado e domingo:

Debate Rico e Lázaro (Leandro Quadros e Pr. Tiago Abdalla)

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